30 de dezembro de 2015

Para Quem e Para Que Fazemos ou Somos de Candomblé?




(...) quando eu empodero o outro, eu me empodero também. Porque, quando ele entende o que eu compreendi, passa a ser parte de mim.
Ontem em conversa com uma irmã do Rio de Janeiro, mulher, negra, ativista, escritora e de Candomblé; terminamos a nossa conversa até altas horas da madrugada com esta questão: PARA QUEM E PARA QUE FAZEMOS OU SOMOS DE CANDOMBLÉ?
Na mesma hora, uma filha de santo de Osun, manda-me a boa notícia de que o edital do Iphan referente à Edital PNPI 2015 - Prêmio Boas práticas de Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial e tínhamos o início da resposta a nossa questão.
Parece-me que os motivos pelos quais deveríamos fazer Candomblé se perderam ao longo do seu caminho histórico.
A mim, o Candomblé nasce como um movimento de resistência negra. Diante de tanta dor, tanto sofrimento, opressão e subalternização dos seres humanos escravizados no Brasil e da tentativa de retirada de sua negritude e africanidade, a família negra se mobiliza para que, de alguma maneira, pudesse ter, aqui no Brasil, um pedaço de sua África Ancestral – nagô, fon ou banta e, por isso, passamos a ter o Candomblé.
Obviamente, estamos diante de a-FÉ-to. A fé nas divindades africanas, na força vital, no sopro de vida, na cabeça ancestral e na ancestralidade africana como um todo se mobiliza para que esta família sobreviva, cure-se, fortaleça-se, renove-se, ame, tenha filhos, vida longa e para que esta família e os seus sejam protegidos por seus ancestrais e pelas divindades africanas e para que tenham uma caça próspera de modo que possam (sobre-) viver como seres humanos que até então não eram.
Sempre me pergunto se, no momento, da gênese do Candomblé tínhamos tudo o que temos hoje; porque, salvo engano, ela nasce pronto; foi elaborado e ali já nasciam seus primeiros iniciados; não sei se ele nasceu como uma colcha de retalhos que foi se tecendo ao longo dos anos e se podemos atribuir a sua completude ao século XXI.
Muito pelo contrário, penso que podemos atribuir ao século XXI a sua incompletude, pois, certamente, buracos deixados pela falta de vivência foram sendo tapados com coisas não necessariamente do universo africano no Brasil.
Hoje, o que conta são os “bodes” – a quantidade deles determinará os ganhos, o número de dias – quantos mais dias forem utilizados para a iniciação mais forte se diz que ela será, a roupa mais bonita e o adê mais alto, o pano de cabeça, igualmente, mais alto e mais vistoso; pois, essas são as verdadeiras contribuições do século XXI – apenas para citar algumas. Na sociedade do visível e do ter para ser, o que importa é a concretude das coisas.

Sou muito jovem, eu sei que sou jovem, mas, tendo eu nascido em uma família de axé, vejo com tristeza os rumos do Candomblé. Obviamente, eu também, como todo mortal, fui contaminado e acreditei, por alguns anos, que o exagero agradaria Orixá, mas, chega o dia em que você precisa (re-)pensar como o fazem os filósofos, tudo o que lhe disseram que era verdadeiro e bom e tudo o que tomou como verdade absoluta.
Vejo agora que, quando pensava desta forma, ou seja, na grandeza, na materialidade, nos bodes gigantescos, no Ojá de edredom e apenas no resultado de um suposto pacto, nem negro era. Não pensava como negro e nem pensava o Candomblé como negro e de origem africana.
E ali estava o meu maior problema; eu não fazia Candomblé, fazia algo europeu e cultuava o etnocentrismo com o nome de Candomblé.
Creio que um dia temos que acordar nos perguntar: por que e para quem fazemos Candomblé?
Hoje, vejo que o Candomblé se faz para a manutenção da memória ancestral, integração humana, também pelos a-FÉ-tos, e, sobretudo, para que possa ser um espaço da Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial.
Não sei se a minha voz lhes parece excludente, não gostaria que soasse assim, mas falo de coração aberto que precisamos pensar, falar, conversar e entender a grandiosidade do Candomblé e o seu papel social para além das estratégias de fragmentação que o opressor nos impôs e aceitamos – porque sempre são sutis e com a sutileza própria daqueles treinados para dominar os que subjugam; este mesmo opressor que, de alguma forma, transformou-nos em algo que não deveríamos ser.
Convido a todos do Candomblé para um diálogo franco e aberto com vistas ao “empoderamento” por meio da nossa essência e por meio do que nos for autentico e nosso.
Porque, quando eu empodero o outro, eu me empodero também. Porque, quando ele entende o que eu compreendi, ele passa a ser parte de mim.

Professor Dr. Sidnei Barreto Nogueira
Babalorixá da CCRIASàngó
Coordenador do Projeto de Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial “Conversa de Terreiro” – Jornada de Diálogos, Estudos, Sistematização de Conhecimentos Ancestrais da África Negra no Candomblé Nagô-Queto – criasango@gmail.com
Para Jacqueline Oba Negraline e aos irmãos do Ile Ara
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Fotos: 
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Um comentário:

  1. Caro Sidnei, poucas vezes me senti tão representado num texto quanto nesse seu. Fico feliz por constatar que a visão que tenho do candomblé é compartilhada por gente que se propõe a pensar mais profundamente a fé que aconchegamos no coração, mas na mesma proporção devemos colocar à luz da razão. Suas questões são as que também coloco: qual o sentido do que somos, do que fazemos? Por que nos deixamos levar por essa concretude liquefeita hodierna? Por que não somos mais fiéis à perenidade do imaterial que nossos antepassados nos legaram e nossos rituais nos transmitem? Por que a beleza do simples não nos basta mais? À medida que conseguimos respostas a questões como estas, nos tornamos mais livres. Aí não importa se quem está do meu lado mantém o Ojá de edredom. Quem sabe ele (a) não resolve me perguntar por que sou tão simples, por que os trajes do meu Orixá são singelos... Como você diz, para que o candomblé não continue se perdendo na sua trajetória histórica, é fundamental não ceder à vontade de quem aposta em nossas divisões como estratégia para continuar a dominação. Contra o etnocentrismo que seduz alguns de nós, reforcemos nossa diferença. Parabéns pelo belo texto.

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